Mundo Trabalhista
Por Andressa Cavalcante
Com o advento da pandemia da COVID-19, inúmeras novas controvérsias passaram a se dar em sociedade, a exemplo da exigência da imunização vacinal como condição de ingresso de pessoas em estabelecimentos privados e locais públicos. No universo do trabalho, em virtude do esforço de contenção da pandemia e da busca por condições adequadas de saúde, higiene e segurança no ambiente de trabalho, muitos empregadores passaram a exigir o passaporte vacinal para o retorno ao trabalho presencial. Dentro desse contexto, surgiu a hipótese, até então sem precedentes, da aplicação de demissão por justa causa ao empregado que se recusar à vacinação.
Se por um lado há notória necessidade de resguardar a saúde da coletividade, diante das evidências cientificas e estatísticas de que a vacinação reduz o risco de contágio e as graves repercussões da doença no organismo, por outro, levantam-se vozes que suspeitam da eficácia da vacina e defendem o direito individual, a liberdade de consciência e de convicção filosófica de não se vacinarem, considerando como ato discriminatório a exigência da vacinação. Surge, então, a questão jurídica a respeito da legalidade da demissão por justa causa na hipótese de recusa da vacinação.
Historicamente, os tribunais brasileiros sempre privilegiaram a aplicação das Normas Regulamentares, que regem a segurança e a saúde do trabalhador e do ambiente de trabalho, como forma inconteste de proteção a coletividade, a qual se sobrepõe ao eventual interesse individual de quem quer que seja de não se submeter às referidas regras. A princípio, não há qualquer indicativo de que a exigência da cobertura vacinal como condição de ingresso ao ambiente de trabalho fuja a esta regra geral, considerando que o vírus da COVID-19 já levou a óbito mais de meio milhão de pessoas, e sua transmissão se encontra potencializada por novas cepas altamente contagiosas.
A prevalência do interesse coletivo em detrimento ao privado está prevista no art. 8 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Sobre a obrigatoriedade da vacina, o Superior Tribunal Federal (STF), por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586, 6587 e Tema 1.103, manifestou entendimento no sentido de que não se pode forçar alguém a tomar a vacina, contudo a pessoa que não quer se vacinar pode sofrer restrições ao exercício de direitos a exemplo de frequência a determinados locais.
Em sentido diametralmente oposto ao do STF, o Governo Federal, por meio do Ministério do Trabalho e Emprego, publicou a portaria MTP nº 620, a qual considera que a não apresentação de cartão de vacinação contra qualquer enfermidade não está inscrita como motivo de justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador, nos termos do art. 482 da CLT.
Em face da referida portaria, foi apresentada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 898, visando suspender os citados dispositivos, bem como a declaração de que seu conteúdo que viola preceitos fundamentais, tomando por base, em suma, a inconstitucionalidade formal da portaria, por limitação à autonomia do empregador nas relações de trabalho, medida que, exigiria lei formal (art. 5º, II, CF) e inconstitucionalidade material da norma, por violação ao direito à vida e à saúde, além dos citados julgados do STF anteriormente proferidos sobre o tema (vacinação obrigatória).
Apreciando tal demanda, o Supremo Tribunal Federal, em decisão cautelar proferida no dia 12 de novembro de 2021, decidiu pela suspensão dos “dispositivos impugnados, com ressalva quanto às pessoas que têm expressa contraindicação médica, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra COVID-19 ou em consenso científico, para as quais deve-se admitir a testagem periódica”.
Por conseguinte, a referida decisão, de forma excepcional, apoiou-se em alguns aspectos que merecem destaque e devida observância, como é o caso do dever de o empregador assegurar a todos os empregados um ambiente de trabalho seguro (CF/1988, art. 225), com base em medidas adequadas de saúde, higiene e segurança.
Ressalta, ainda, que os empregados possuem direito a um meio ambiente laboral saudável (CF, art. 7º, XXII), aliado ao fato do respeito ao poder de direção do empregador, sob pena, em último caso, de despedida por justa causa (CLT, art. 482, “h”). Por fim, informou ser importante, que o poder de rescindir o contrato de trabalho de um empregado, em que pese seja uma faculdade do empregador, deverá ser exercido com moderação e proporcionalidade, em respeito ao valor social do trabalho, funcionando como última opção.
Vale, também, destacar que a citada Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ainda aguarda decisão definitiva de mérito.
Como observado, o ato demissional se constitui em um direito potestativo do empregador, desde que ele indenize o empregado, conforme art. 7º, da CF. Por sua vez, a demissão por justa causa se configura como uma medida extrema, cujas possibilidades estão restritas pela lei, sendo necessária a configuração de justo motivo, proporcionalidade e imediatidade na adoção da medida.
No cotejo destes requisitos, há que se verificar no caso em concreto se a exigência foi incontestavelmente divulgada e era de ciência do empregado: o empregador deve ter meios de prova de que tal medida se impunha como necessária para o retorno ao serviço, para que se configure o ato de insubordinação. E, considerando a possibilidade de regularização deste ato, há que se conceder prazo para que o empregado cumpra a exigência ou, caso exista motivações de ordem médica para a não vacinação, que assim o seja comprovado.
Portanto, resta válida e plenamente possível a demissão por justa causa no caso de recusa do empregado em se vacinar, por ato de insubordinação e indisciplina. Considera-se, contudo, indispensável que seja possível comprovar que houve comunicação efetiva e clara sobre tal exigência, oportunizando, inclusive, prazo razoável para o cumprimento da exigência ou demonstração de contraindicação médica, como requisitos para a configuração da regularidade do ato demissional sob tal modalidade.